A MP 1153/2022 altera a Lei nº 11.442/2007 na parte em que regula o contrato de seguro de responsabilidade civil do transportador rodoviário de cargas e vem sofrendo ataques distorcidos sobre o seu conteúdo que merece enfrentamento para melhor esclarecer as alterações introduzidas na legislação em vigor.
Para a perfeita compreensão da questão mister se faz um retrospecto histórico sobre o que ocorreu com o seguro do transporte rodoviário de carga desde 1.966 quando foi instituído o seguro obrigatório do transportador, pelo Decreto-lei 73/1966 e regulamentado pelo Decreto 68.867/1967.
Em 1966 temos a edição do Decreto-Lei 73/66, que estabelece a obrigatoriedade da contratação de seguros de incêndio e transporte de bens pertencentes a pessoas jurídicas, bem como de responsabilidade civil dos transportadores por danos à carga transportada. O artigo 20 estabelece:
“Art 20. Sem prejuízo do disposto em leis especiais, são obrigatórios os seguros de:
…
h) incêndio e transporte de bens pertencentes a pessoas jurídicas, situados no País ou nêle transportados;
…
m) responsabilidade civil dos transportadores terrestres, marítimos, fluviais e lacustres, por danos à carga transportada.”
Já em 1967, é apresentado o Decreto regulamentador nº 61.867/67, que regulamenta a contratação do seguro de responsabilidade civil em garantia das perdas e danos sobrevindos à carga que lhes tenha sido confiada para transporte, bem como do seguro do proprietário dos bens e mercadorias para cobertura de riscos em caso fortuito ou de força maior. Em seus artigos 10 e 12 diz:
“Art. 10. As pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado que se incumbirem do transporte de carga, são obrigadas a contratar seguro de responsabilidade civil em garantia das perdas e danos sobrevindos à carga que lhes tenha sido confiada para transporte, contra conhecimento ou nota de embarque.
…
Art. 12. As pessoas jurídicas, de direito público ou privado, são obrigadas a segurar os bens ou mercadorias de sua propriedade, contra riscos de fôrça maior e caso fortuito, merendes aos transportes ferroviários, rodoviários, aéreos e hidroviários, quando objeto de transporte no território nacional, e de valor igual ou superior a cinco mil cruzeiros novos.”
O seguro de responsabilidade civil dos transportadores, pessoas físicas ou jurídicas, teve suas primeiras condições gerais editadas em 1968 e hoje são regulados pela Resolução CNSP 219/10. Já o seguro que seria do proprietário da carga, mencionado no artigo 12 acima, contra apenas os riscos força maior e caso fortuito, nunca foi regulamentado pelo Conselho Nacional de Seguros Privados porque à época existia o seguro denominado risco rodoviário que era mais interessante comercialmente para o mercado segurador.
Atualmente esse seguro de risco rodoviário, com suas coberturas amplas, é denominado transporte nacional e é contratado por diversos proprietários de cargas/ embarcadores, destacando-se que não se trata de seguro obrigatório e sim facultativo. Ele contrata o seguro do bem de sua propriedade, que é entregue ao transporte. Esse seguro existente há longa data, com vários nomes, denomina-se hoje “Transporte Nacional”, encontra-se regulamentado pela Circular SUSEP 354/2007, e que define:
Segurado: É a pessoa física ou jurídica que, tendo interesse segurável, contrata o seguro em seu benefício pessoal ou de terceiro.
Riscos Cobertos: 1.1. A presente cobertura garante, ao Segurado, os prejuízos que venha a sofrer em conseqüência de todos os riscos de perda ou dano material sofridos pelo objeto segurado, descrito na apólice ou averbações, em conseqüência de quaisquer causas externas, exceto as previstas na Cláusula 2 (PREJUÍZOS NÃO INDENIZÁVEIS).
Observa-se que os riscos cobertos são muito mais amplos que aqueles concedidos ao transportador rodoviário em seus seguros obrigatórios. E este seguro está à disposição de toda e qualquer indústria ou estabelecimento comercial que tenha interesse em contratá-lo, o que evidencia ser falso o argumento difundido maliciosamente que a MP 1153/2022 vai proibir o proprietário da carga contratar seguro para proteger seu patrimônio.
Já o seguro do transportador, conhecido como RCTR-C continua obrigatório para todos os embarques por ele realizados. A cobertura o RCTR-C, conforme regulamentação do CNSP Resolução CNSP n° 219/10 é restrito aos eventos de responsabilidade do transportador, que são os acidentes com o veículo de carga, a saber: colisão, abalroamento, capotamento, tombamento, incêndio e explosão, e não inclui o roubo, apropriação indébita e furto, já que em 1966, época da regulamentação, tais eventos não eram comuns.
A partir de 1978 começou a crescer o desvio de carga, assim chamados os eventos de roubo, furto simples ou qualificado, apropriação indébita e estelionato, afetando, em muito, as empresas de transporte que eram obrigadas a efetuar o pagamento da indenização aos proprietários da carga com os seus próprios recursos, já que não existia seguro para esses riscos. Somente em 1985 o IRB, à época sob controle estatal, e a SUSEP, resolvem estabelecer um seguro de responsabilidade civil facultativa de desvio de carga, abrangendo os riscos de roubo, furto simples ou qualificado, apropriação indébita, estelionato e extorsão simples ou mediante sequestro.
Assim sendo, de 1985 até 2007, os transportadores rodoviários de carga contratavam os seguros de RCTR-C obrigatório, e o seguro de desvio de carga (RCF-DC) facultativo, protegendo a sua responsabilidade perante o proprietário da mercadoria, de outro lado, os proprietários da carga/embarcadores contratavam inicialmente o risco rodoviário e, posteriormente, em 2002 passaram a contratar o seguro de transporte nacional de cunho facultativo.
Havia um perfeito entrosamento no mercado segurador na área de transporte. O transportador tinha o seu seguro para proteção da sua responsabilidade com a carga. O embarcador/proprietário da carga tinha o seu seguro para a proteção do bem de sua propriedade. Ocorrendo qualquer sinistro especificado nas apólices do transportador tinha ele a cobertura da sua seguradora. O embarcador tinha a apólice própria e recebia a indenização da sua seguradora, que imediatamente era ressarcida pela seguradora do transportador. Era comum as seguradoras manterem uma “verdadeira câmara de compensação” das indenizações devidas.
A partir de 2007, proprietários da carga/embarcadores, com um único objetivo, não pagar o frete valor que é o recurso financeiro para o transportador suportar todas as providências de resguardo e proteção à carga, o que é sua responsabilidade, começam a estipular, de forma indevida, apólices do seguro obrigatório do transportador em seguradoras com as quais mantinham estreitas relações comerciais, retirando do transportador o poder de negociação e controle dos seguros obrigatórios deste e, ao mesmo tempo, isentado esse mesmo transportador dos riscos do seguro facultativo RCF-DC que cobria o roubo, o furto, a apropriação indébita entre outros delitos.
Ocorre que essa isenção, chamada de dispensa de direito de regresso (DDR), não é plena, vem acompanhada de diversas estipulações que condicionantes, onde o transportador não terá o benefício descrito na DDR caso ocorra culpa grave (este termo é amplo e genérico, podendo ser aplicado em muitas situações que o proprietário da carga ou sua seguradora entenderem oportuno), ex. ato praticado pelo preposto do transportador (neste caso se um motorista praticasse apropriação indébita o proprietário da carga e sua seguradora poderiam exigir o pagamento da indenização pelo transportador, lembrando que no seguro de RCF-DC que o transportador deixou de contratar, por exigência do embarcador, esta cobertura é plena), descumprimento de regras de trânsito (nesse caso grande parte dos acidentes não estariam cobertos, na medida que o motorista poderia ultrapassar o limite de velocidade, fazer ultrapassagem indevida, entre outros). Não existe esta condição nos seguros do transportador, que justamente busca se proteger de atos causados por seu empregado ou preposto). Além de todas as restrições acima, estas isenções conhecidas como DDR vêm acompanhadas de planos de gerenciamento de riscos (PGR’s) com as mais diversas providências, como monitoramento, rastreamento, escolta, travas eletrônicas de portas, grades instaladas na boleia, sensores e muitos outros, e caso o transportador venha a descumprir qualquer desses itens também não terá o benefício da isenção da DDR, devendo pagar integralmente o prejuízo.
Ficou abalada a segurança jurídica na relação embarcador e transportador, pois atualmente o judiciário foi infestado por diversas ações promovidas pelas seguradoras dos embarcadores ou pelos próprios contra empresa de transporte em função das cartas de DDR. Ou seja, o transportador acaba ficando completamente desprotegido, enquanto se efetua o próprio seguro terá a proteção ampla da sua responsabilidade.
O resultado dessa prática tem sido a redução de forma artificial e predatória do frete total com a consequente deterioração financeira das transportadoras de 2007 até hoje, o acúmulo de ações judiciais por parte de seguradora e embarcadores contra transportadores, o aumento do custo operacional de transporte por parte dos transportadores, uma vez que terão uma apólice de seguro de RCTR-C por embarcador e um gerenciamento de risco por embarcador, representando dezenas de apólices e PGR’s.
Hoje é comum veículos de transporte circulando sem a sua carga completa, em face de limites de valor, horários e rotas impostos por diversos PGR’s de embarcadores, bem como transportadores com mais de 50 apólices de seguros de RCTR-C, as quais são geridas pelos próprios proprietários da carga em acertos comerciais com suas seguradoras, alijando o transportador de qualquer controle, além de estarem impedidos de contratar o seguro de roubo, furto e apropriação indébita.
A MP 1153/2022 com o aperfeiçoamento de diversas emendas apresentadas com esse objetivo (emendas 14 do Deputado Daniel Freitas, 41, 42 e 44 do Deputado Cesinha da Madureira, 54 e 55 do Deputado Capitão Alberto Neto e 71 do Deputado Hugo Leal) veio para corrigir tudo isso. Trará de volta as condições que foram praticadas de 1966 até 2007, ou seja, 41 anos onde o transporte rodoviário de cargas se desenvolveu e se aperfeiçoou junto com um sistema de seguro equilibrado, onde o transportador vê plenamente cobertas as suas responsabilidades principais e o proprietário da carga tem a liberdade de contratar o seguro como bem entender.
Todavia, algumas desinformações sobre a MP vêm sendo veiculadas por supostos técnicos de seguro ou mesmo de pessoas interessadas em lançar confusão sobre o tema. São necessários alguns esclarecimentos sobre esses pontos específicos:
Por que a contratação do seguro exclusiva pelo transportador?
R.: O seguro que trata a MP, dizendo-o de contratação exclusiva do transportador, é aquele que trata de sua “responsabilidade”, e somente este. Tanto é verdade que à frente do nome de cada seguro, está incluído a palavra “responsabilidade”. Ora, quem tem responsabilidade nessa relação, pela prestação de serviço, é somete o prestador, que é o transportador rodoviário de carga, seja ele pessoa física ou jurídica. Logo, a expressão “exclusivo” está atrelada à prestação de serviço e sua responsabilidade. O proprietário da carga nunca contratará um seguro de responsabilidade para si, na prestação do serviço de transporte, na realidade ele contrata o seguro do bem de sua propriedade, que é entregue ao transporte, como já se viu acima.
Por que a escolha da seguradora é de livre arbítrio do transportador?
R.: Esta condição é obvia. Se o transportador vai contratar um seguro obrigatório que visa proteger seu patrimônio, diante de uma responsabilidade tão grande, envolvendo culpa presumida e responsabilidade objetiva, devendo ainda o mesmo pagar os prêmios desse seguro, nada mais justo e correto, que ele escolha a seguradora que ele entender melhor lhe ofereça o serviço. Seria um absurdo que um terceiro viesse a escolher a seguradora com quem você deve trabalhar.
Por que o embarcador/dono da carga não deve interferir?
R.: Também é óbvio que não deve haver interferência do dono da carga na contratação do seguro obrigatório do transportador, quando este último escolhe a seguradora que melhor lhe prestar o serviço. O embarcador deve analisar o transportador que irá contratar, e no rol dos itens a ser analisados deve verificar se tem seguro e se a seguradora é idônea, mas nunca interferir na gestão e administração de uma outra pessoa física ou jurídica que é autônoma.
Por que o custo do seguro deve ser pago pelo embarcador?
R.: Por uma razão singela: faz parte do custo do transporte. No mundo todo e em todos os ramos de transporte é cobrado o frete valor ou “ad valorem” como componente do preço do transporte. Somente no transporte rodoviário de carga, no Brasil, existe essa discussão do embarcador se recusar a pagar o custo do seguro.
Por que o embarcador não poderá impor o cumprimento de PGR ao transportador?
R.: Nesse ponto vale esclarecer que a seguradora do transportador exige PGR, sendo esta a maior interessada em mitigar o risco, pois num eventual sinistro é ela que arcará com a indenização. O PGR deverá ser negociado entre a transportadora e sua seguradora na contratação da apólice. A MP deixa claro a existência do PGR, todavia, se o contratante quiser outras medidas, não está impedido de fazê-lo, bastando arcar com tais custos.
O embarcador pode contratar outros seguros?
R. Nada impede o proprietário da carga ou embarcador de contratar outros seguros. Como já visto tem à sua disposição a contratação do seguro de “Transporte Nacional”, o qual se encontra regulamentado pela Circular SUSEP 354/2007, com cobertura ampla que bem entender. Não é verdade que o embarcador não pode contratar seguro.
Com relação aos impactos de mercado, não é verdade que a MP 1153/22 provocará elevação no custo do frete. Ao contrário, vai provocar uma redução além de trazer grandes benefícios ao mercado. O principal objetivo é voltar ao cenário até 2007 onde o mercado de forma equilibrada possuía o seguro do embarcador, denominado Risco Rodoviário (RR) e depois agregado ao TN – Transporte Nacional.
O transportador contratará o seu seguro de RCTR-C (responsabilidade civil do transportador rodoviário de carga) que cobre colisão, abalroamento, tombamento, capotamento, incêndio e explosão do veículo transportador, e o Seguro de Roubo que cobre o roubo, furto simples ou qualificado, apropriação indébita, estelionato, extorsão simples ou mediante sequestro.
A seguradora do embarcador terá a oportunidade de se ressarcir junto à seguradora do transportador, em todos os eventos acima descritos, ou seja, a tendência do seguro do embarcador é ter redução do custo, pois na grande maioria dos eventos, o valor pago será totalmente ressarcido. Já os seguros do transportador, teremos também a redução dos custos em relação ao roubo, que passa a ser obrigatório, logicamente, aumentando a massa de arrecadação de prêmios, existe a evidente tendência de redução de taxas.
Em relação aos gerenciadores de riscos, sendo seguro de roubo obrigatório para o transportador, e as apólices, tendo necessariamente, um PGR, haverá um claro incremento no mercado desse serviço, pois toda apólice terá um PGR (são 200 mil empresas de transportes e 967 Cooperativas de transportes) e não mais uma pequena parcela dos embarcadores que têm seguro, embora representem um grande volume de transporte, a exigir PGRs. próprios em menor número de apólices.
Para a seguradora o impacto no mercado será positivo, pois haverá incremento no número de apólices de roubo, com maior arrecadação de prêmio, e redução do trabalho administrativo, na gestão de milhares de apólices estipuladas pelos embarcadores vinculadas a transportadores, chegando estes últimos a terem dezenas de apólices abertas nas mais diversas seguradoras, gerando grande controle administrativo.
Na questão do frete, o transportador, arcando com a totalidade dos riscos e do gerenciamento do risco vinculado ao seguro, deverá receber frete compatível. De outro lado, o embarcador, contratante do frete, terá redução dos custos de seguro e do próprio gerenciamento de riscos.
A previsão apresentada de aumento de sinistralidade não tem qualquer base técnica, pois com o gerenciamento de risco obrigatório nas apólices, haverá a mitigação dos riscos e não o seu incremento.
Um dos principais pontos de benefício das mudanças apresentadas pela MP 1153/22 é que teremos um aumento da eficiência do transporte rodoviário de cargas, tanto que a indústria automobilística vem adotando novas tecnologias justamente para que os caminhões possam transportar maiores volumes de carga. A legislação de trânsito vem sendo modernizada e prevendo as mais diversas combinações veicular rodoviárias (bitrem, rodotrem, entre outros). Entretanto os planos de gerenciamento de riscos dos embarcadores não conseguem enxergar a complexidade de uma empresa de transportes que procura maior eficiência na utilização de equipamentos adequados otimizando a capacidade de seus veículos. Já o gerenciamento de risco promovido pela empresa de transporte em conjunto com sua seguradora, terá essa visão holística da operação. Assim, enquanto que hoje temos uma subutilização da frota brasileira, pelas medidas limitadoras do GR dos embarcadores que só tem visão para sua mercadoria, promovendo transportes parcialmente ociosos, teremos, com a MP 1153/22, a plena utilização dos equipamentos rodoviários, com eficiência, reduzindo-se assim, o custo Brasil.
Brasília, 03 de março de 2023.
Francisco Pelucio
Presidente da NTC&Logística
Fonte: NTC&Logística