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Artigo: Entendendo a “Bolha Rodoviária” (Geraldo Vianna)

 

 

Artigo: Entendendo a “Bolha Rodoviária” (Geraldo Vianna)

Numa palestra que fiz há poucos dias no 15º Seminário da NTC, na Câmara dos Deputados, em Brasília, usei pela primeira vez a expressão “bolha rodoviária” e revelei números impactantes. Mas eles eram muitos, o que talvez tenha tirado o foco do essencial. Vou tentar abstrair informações supérfluas, indo direto ao ponto: o T.R.C. vive uma extraordinária sobreoferta de transporte, a que chamei daquela maneira numa óbvia referência à “bolha imobiliária” norte-americana que estourou em 2008. Embora haja muitas diferenças entre os dois episódios, a verdade é que aqui, como lá, tudo começou com crédito abundante e barato. E também pode resultar numa enorme inadimplência. Note-se que estou falando de valores multibilionários, como veremos a seguir.

De fato, foi fortíssimo o crescimento da frota brasileira de caminhões na primeira metade desta década (de 2010 a 2014), em que foram licenciados, em média, 152 mil caminhões/ano, um aumento de 81% em relação à média da década anterior (2000 a 2009), que foi de 84 mil/ano – que já representara um salto de 53% sobre a média histórica de 55 mil caminhões/ano, verificada nas últimas três décadas do século passado. Estou falando de caminhões vendidos no mercado interno e licenciados, ano a ano. Os números foram extraídos do “Anuário da Indústria Automobilística Brasileira”, edição de 2015, da ANFAVEA. As conclusões são minhas.

Para onde foram todos esses caminhões? O “Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas” da ANTT responde: 82% foram adquiridos por Empresas de Transporte (ETCs) e pelos Transportadores Autônomos (TACs). Pelo menos, nos últimos 3 anos (no período entre meados de maio de 2012 e final de abril de 2015), em que posso fazer comparações seguras porque tenho as respectivas telas preservadas, o RNTRC mostra que aqueles operadores registraram 328 mil novas unidades (sendo 170 mil de TACs e 158 mil de ETCs) para um total de cerca de 400 mil caminhões licenciados no período. É de se supor que os restantes 72 mil tenham sido adquiridos por transportadores de carga própria, que não estão obrigados àquele Registro, e por alguns “franco atiradores”. Para efeito desta análise, para simplificar, atribuí aos TACs os veículos das Cooperativas, já que estas, por força de lei, são formadas por Transportadores Autônomos. Além disso, os números referentes às Cooperativas são muito pouco significativos no cômputo geral.

Detalhando um pouco mais, ainda com base nas informações da ANTT, constata-se que, dos 328 mil caminhões incorporados à frota de ETCs e TACs nos últimos 3 anos, 116,2 mil são cavalos mecânicos, 154,8 mil são caminhões simples e 57,8 são caminhões leves. Esses veículos têm uma grande variedade de marcas e modelos, com diferentes níveis de preço. Examinando o mix comercializado, atribuí, apenas para efeito de estimativa, os preços médios de R$ 300 mil, R$ 150 mil e R$ 70 mil, respectivamente, para cada uma daquelas categorias. O resultado é impressionante: somente na aquisição de caminhões, os operadores do T.R.C. (Empresas e Autônomos) investiram R$ 62 bilhões em 3 anos, ou R$ 20,6 bilhões/ano.

Mas não foi só isso. Eles compraram também – e registraram no RNTRC – 65 mil novos veículos comerciais leves (caminhonetes, utilitários e veículos de apoio) e 165,7 mil novos semirreboques e outros veículos tracionados (a preços médios de R$ 50 mil e R$ 75 mil, respectivamente), o que representa mais R$ 15,6 bilhões de investimentos em 3 anos, ou R$ 5,2 bilhões/ano. Também aqui fiz alterações na terminologia utilizada pela ANTT e agrupei de forma diversa algumas categorias de veículos, de modo a aproximá-las do jargão do mercado e a possibilitar a comparação dos dados do RNTRC com as informações da ANFAVEA.

Chegamos, portanto, a um investimento total de incríveis R$ 25,8 bilhões/ano, apenas nos últimos 3 anos, ou US$ 10,3 bilhões/ano numa relação, seguramente superestimada, de R$ 2,50/dólar, em média, no período em exame. Se houver qualquer imprecisão nesses números – o que é possível, dada a adoção de preços médios –, a eliminação dela, através de cálculos mais refinados (que considerassem, por exemplo, o preço de cada marca/modelo comercializado, em cada momento, ao câmbio da época), certamente conduziria ao aumento daqueles números, não à sua redução.

Há quem reaja com incredulidade diante desses dados. Estou convencido de que eles estão certos, pelo menos aproximadamente certos. E a verdade é que não estou preocupado com exatidão, mas com ordem de grandeza. E quanto a esta, se erro houver, será, com certeza, por ter sido subestimada, e não o contrário. Mesmo porque, além de tudo, como se sabe, ao longo desse período o setor não investiu apenas em veículos de carga. Muitas empresas construíram ou reformaram terminais; adquiriram sorters e outros equipamentos de movimentação de cargas, além de carrocerias e baús; investiram pesadamente em T.I., comunicação, rastreamento de cargas, monitoramento de veículos etc. Esses outros dispêndios, embora de quantificação quase impossível, acrescentam, com certeza, valores muito expressivos àquela conta.

O T.R.C. é, de fato, um verdadeiro “paradoxo ambulante”. Como é possível que este setor cheio de problemas e carências, constituído por mais de 1 milhão de TACs e ETCs, dos quais cerca de 98% são micro e pequenos empreendedores, tenha conseguido investir, por exemplo, quase o triplo (278%) do que investe a própria Indústria Automobilística (US$ 3,7 bilhões/ano, segundo a ANFAVEA, no já citado Anuário) e quase o quádruplo (377%) do investimento feito, no mesmo período, pelo conjunto das Concessionárias de Rodovias em todo o Brasil (US$ 2,73 bilhões/ano, segundo a ABCR, em seu site)?

Bem, em primeiro lugar, essas evidências nos obrigam a pensar em como é realmente grande e tão pouco compreendido este setor, que é, de fato, um dos maiores e mais importantes da economia brasileira, sem mencionar o seu caráter estratégico, que se torna evidente nos momentos críticos, quando ocorrem movimentos de paralisação de suas atividades, ainda que parciais e localizados. Por força da informalidade ainda reinante, não se consegue precisar a sua receita e, portanto, a sua exata participação no PIB brasileiro. Saberemos isso em breve, quando tiverem sido definitivamente implantados, em caráter compulsório, o conhecimento e o manifesto eletrônico de cargas. Sempre sustentei, contudo, que esta receita não pode ser inferior a R$ 300 bilhões/ano (com base no consumo aparente de diesel e na remuneração da extensa mão de obra do setor, supondo que esses itens de custo representem, na média, cerca de 60% do custo total), o que nos levaria a mais de 5% do PIB de 2014 (R$ 5,521 trilhões, segundo o IBGE). Mas deixo a demonstração desta tese para outro artigo, para não alongar em demasia este.

Além do gigantismo do setor, não se pode esquecer que praticamente todo aquele investimento, com poucas exceções, foi financiado com recursos principalmente do BNDES, em programas específicos como PSI e Procaminhoneiro, com condições inusitadas, em termos de juros, carências, garantias, prazos de pagamento. Tanto que até quem não precisava de caminhão foi às compras. Consta que médicos, dentistas, advogados e outros profissionais andaram “investindo” em caminhões, porque ouviram falar que era bom negócio.

Diga-se, a bem da verdade, que essas linhas de crédito foram fruto de reivindicações da categoria, mas sempre associadas a uma política de renovação da frota, por razões econômicas, ambientais e de segurança, que implicava necessariamente na venda de caminhões novos em larga escala, de um lado, e na reciclagem dos veículos mais antigos da frota, com mais de 25 anos, de outro. Isso nunca aconteceu. O Governo acabou promovendo apenas uma fortíssima expansão da frota de caminhões, em benefício da Indústria Automobilística e de seus trabalhadores, sem se preocupar com as repercussões disso no mercado de transporte.

Havia, é claro, a ideia dominante de que o Brasil estava fadado a ter um “crescimento chinês”, que estava a caminho de ser a 4ª ou 5ª maior economia do mundo e que, portanto, esse crescimento da frota seria facilmente absorvido pelo aumento da demanda. Aconteceu o contrário: quando a frota mais cresceu foi exatamente quando o PIB começou a murchar, crescendo apenas 4,7% no último triênio e apresentando crescimento certamente negativo no corrente ano de 2015. É aí que nasce a temida “bolha”. Para guardar proporção com o pequeno crescimento havido nos últimos anos, os 152 mil novos caminhões/ano do período 2010/2014 – um salto de 81% em relação à década anterior, como já dito – deveriam ter variado em outro patamar; nos meus cálculos, entre 90 e 100 mil unidades/ano. Portanto o excesso de frota em relação à demanda deve ser algo entre 250 e 300 mil caminhões – uma enormidade, correspondente a cerca de 2 anos de produção da Indústria montadora; algo capaz de desestabilizar por completo o mercado de fretes, como vem acontecendo e, em termos de risco de inadimplência, um “papagaio” que começa a ser empinado do tamanho de R$ 40 bilhões, pelo menos.

“Do couro sai a correia”. Se a demanda continuar tão baixa e os fretes continuarem no nível em que estão, não haverá margens ou sobras de caixa para pagar as prestações dos financiamentos. E a perspectiva de normalização fica ainda mais distante, na medida em que o ajuste fiscal continue sendo conduzido de forma tão pouco seletiva. De um lado, há ainda a ameaça de a desoneração da folha de pagamento das empresas do setor virar pó, com uma elevação de 150% de um item relevante dos custos do setor. De outro, as incertezas na política de preços dos derivados de petróleo, do diesel em particular, que também impactam cruelmente os custos. E, agora, a notícia de que está sob ameaça a manutenção dos mais de 50 mil quilômetros de rodovias sob jurisdição do DNIT, por falta de recursos e por problemas com as empreiteiras nas licitações para renovação dos contratos. Seria o caos anunciado; um enorme retrocesso.

É preciso deixar claro que os 12 meses de carência que o Governo concedeu aos Caminhoneiros no auge da recente paralisação da categoria – e que o Congresso estendeu às Empresas de transporte, mesmo grandes – não vai resolver o problema. Não vejo a menor possibilidade de, daqui a um ano, a economia ter voltado a crescer e os fretes terem se normalizado. Ora, não permitir que se caracterize uma inadimplência deste tamanho é algo que interessa aos operadores do setor, mas interessa muito mais ao próprio Governo, ao BNDES e, mais ainda, aos bancos, repassadores e avalistas desses empréstimos, que, à falta de uma providência de alongamento das dívidas, em condições que garantam a sua solvabilidade, não terão outra alternativa senão passar a reconhecer esses “créditos duvidosos” em seus balanços, com um estrago considerável nos resultados.

Por outro lado, as montadoras de caminhões e toda a cadeia automotiva convivem com a incômoda perspectiva de uma redução drástica de produção, em percentuais talvez sem precedentes na sua história em nosso país. As vendas estão 40% abaixo do ano passado, que já foi bem menor que o anterior, e podem cair mais ainda até o final de 2015. Em compensação, acho que, neste quadro, viabiliza-se, finalmente, o tão aguardado programa de renovação de frota e de reciclagem dos veículos com mais de 25 anos. Esta iniciativa, que o setor de transportes já cobra desde 2003, poderá tirar de circulação até 120 mil caminhões obsoletos – com economia de combustível, ganhos ambientais, redução de acidentes de trânsito e de incidentes que congestionam diariamente o trânsito das grandes cidades. E, de quebra, como uma medida anticíclica, poderá amenizar um pouco o quadro difícil vivido pelas montadoras e por toda a indústria de autopeças. Mas isso somente ocorrerá num prazo de 2 a 3 anos, a partir do momento em que estiver definida a política, com todo o seu arcabouço legal, e estiverem instalados centros de reciclagem em pontos estratégicos do país. É preciso correr.

Nada disso, porém, terá tanto efeito transformador sobre a atual realidade do T.R.C., e do Brasil como um todo, quanto a volta do crescimento do nosso PIB a taxas de 4 a 5% ao ano. Este deve ser o grande objetivo. A austeridade fiscal é, sem dúvida, uma das condições para esta retomada. Mas não é a única. Como já aprendemos em outros momentos da nossa história, cortar despesas e conter a inflação – que é algo que todos queremos – não se faz simplesmente contingenciando verbas ou adiando pagamentos, nem aumentando juros indefinidamente para combater uma inflação que é causada principalmente pelo realinhamento dos preços administrados. Isso desorganiza e intoxica toda a economia. O ganho ilusório que se obtém com o corte de despesas se esvai com o crescimento da dívida pública. O estrago é muito maior que o benefício obtido.

Aliás, o resultado trágico de uma política de financiamento, em princípio desejável, mas adotada sem os cuidados devidos, que construiu a “bolha” aqui demonstrada, lembra, mais uma vez, que, na economia, como na medicina, remédio aplicado na dose errada vira veneno. E mata, ao invés de curar.
(*) Geraldo Vianna é advogado e consultor em Transportes.

Fonte: Geraldo Vianna

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